Dia do Folclore: histórias de ribeirinho revelam Curupira, Matinta Pereira e Fogo Fátuo como lendas vivas da floresta amazônica
22/08/2025
(Foto: Reprodução) Histórias revelam Curupira, Matinta Pereira e Fogo Fátuo como lendas vivas da Amazônia
No Dia do Folclore, celebrado nesta sexta-feira (22), o g1 conversou com moradores da Comunidade São Francisco, às margens do Igarapé do Chita, na Região Metropolitana de Manaus, sobre lendas que atravessam gerações: Curupira, Matinta Pereira e Fogo Fátuo.
Para muitos brasileiros, esses seres encantados são apenas contos usados para assustar crianças ou ensinar respeito ao sagrado. No interior do Amazonas, porém, as histórias ganham outra dimensão: os “encantados” são presença viva, caminham entre os habitantes e mostram que a floresta guarda mistérios e lições profundas.
🔎 Contexto: Os encantados são seres míticos e espirituais do imaginário amazônico, presentes nas tradições folclóricas e culturais das comunidades da floresta.
Na Comunidade São Francisco, não faltam relatos de caçadas interrompidas pelo Curupira, noites assombradas pela Matinta Pereira e pescarias perseguidas pelo fogo azul do Fogo Fátuo.
O pescador Jovenilson Souza, de 31 anos, que mora na comunidade junto da esposa, guarda uma coleção de relatos que vão muito além das tradicionais histórias de pescador, reforçando a presença viva e o respeito aos seres encantados na região.
“Uma vez fomos caçar numa cabeceira próxima. Era caça para consumo próprio, como sempre fazemos. Saímos de manhã, encontramos os porcos, matamos um, e depois resolvemos ir atrás de novo. Quando chegamos ao mesmo ponto, subimos a terra, escutamos o grito deles… seguimos atrás, mas não havia rastro. Só era o mesmo grito", disse.
Foi então que perceberam que não se tratava de algo comum e precisaram recorrer à sabedoria ancestral para lidar com o temido Curupira.
Curupira é o protetor da floresta.
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“A gente percebeu que o Curupira estava enganando a gente. Dormimos duas noites na mata seguindo o grito e ficamos perdidos. Para nos proteger, usamos nossas artimanhas: viramos as camisas do avesso, trançamos cipós e deixamos cigarros fumando. Depois de dois dias conseguimos sair, mas estávamos todos desgastados e com medo".
“Foi um perrengue. Tinha caçador chorando, falando que não ia mais sair da mata, que o Curupira ia pegar, não ia deixar ninguém mais sair. Mas, graças a Deus conseguimos sair", relembrou.
Ao g1, o pescador disse não saber a real fisionomia do “encantado”, já que ele não se revela em forma física para os seres humanos, sendo sentido apenas por quem entra em seus domínios.
Fogo Fátuo
Fogo Fátuo se manifesta como luzes fantasmagóricas em áreas úmidas, como igarapés, pântanos e até cemitérios, acompanhando quem se aventura pela mata durante a noite
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Situação diferente, no entanto, é a do Fogo Fátuo, que inclusive já pegou "carona" na canoa do homem. O ser se manifesta como luzes fantasmagóricas em áreas úmidas, como igarapés, pântanos e até cemitérios, acompanhando quem se aventura pela mata durante a noite.
"Uma vez eu estava pescando sozinho, já de madrugada, e senti algo entrando na minha canoa. Não olhei para trás, só remei até chegar em um terreno mais à frente, numa casa abandonada. Quando passei perto da beira, senti o peso sair da canoa, e então o fogo azul se acendeu atrás de mim. Apaguei a lanterna e remei até sair da área", contou.
Mas, se o Curupira confunde os caçadores e o Fogo Fátuo persegue os pescadores nos igarapés, a Matinta Pereira vai além. Ela carrega consigo a fama de seguir especialmente os que assobiam durante a noite durante suas aventuras na mata. Mas não se limita a isso: quando chega à comunidade, pode permanecer por semanas, assobiando e rondando as casas.
Matinta Pereira
Matinta Pereira se transmuta na imagem de uma anciã encurvada, envolta em mistério.
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Segundo Jovenilson, a encantada se transmuta na imagem de uma anciã encurvada, envolta em mistério, que surge para pedir café ou tabaco, e cuja recusa pode trazer problemas a quem a encontra. Ela, no entanto, também pode ser associada à famosa coruja rasga-mortalha e já acompanhou o grupo de pescadores da comunidade diversas vezes.
Rasga-mortalha: conheça a coruja que é temida popularmente por anunciar a morte
"Quando vamos pescar à noite, ela vem seguindo a canoa até a vila. Chegando lá, fica semanas por perto, assobiando, indo de porta em porta. Só volta para a mata quando o pescador oferece tabaco, café e a convida de volta. Ela é atraída por quem assovia durante a pesca, e atrapalha o pescador até que seja devolvida ao seu lugar", relatou.
Enquanto não recebe as oferendas, a Matinta Pereira não deixa o caçador em paz. "Ela não deixa em paz enquanto aquele que a 'invocou' não a devolve para o seu lugar. Tem que convidar ela pra voltar pro canto dela", disse.
E as lições não param por aí. Para o pescador, os encantados não são brincadeira: fazem parte do cotidiano da comunidade, que já aprendeu a conviver com eles e a respeitar a mata.
"A gente não entra na floresta para pegar mais do que precisa, senão eles vêm atrás mesmo. Eles confundem, enlouquecem. Também não caçamos ao meio-dia, nem à meia-noite, nem em dias santos. Se desobedecemos, eles cobram, e cobram caro", pontuou.
"A gente sente que eles estão por perto. Às vezes o vento assobia de um jeito estranho, ou o fogo azul aparece no igarapé… e a gente sabe que a mata não é só nossa. Tem dono, e a gente respeita", concluiu Jovenilson.
Assim, no coração da Amazônia, o folclore deixa de ser apenas memória ou imaginação: ele se transforma em parte do cotidiano, ensinando que viver na floresta é também aprender a ouvir seus segredos e reconhecer seus guardiões invisíveis, os encantados.
Narrativas devem ser respeitadas, diz antropóloga
Ao g1, a professora e mestra em Ciências Humanas Thaila Fonseca destacou que as lendas amazônicas não são apenas invenções do imaginário popular, mas parte fundamental da vida e da identidade dos povos da floresta.
Segundo ela, essas narrativas atravessam gerações e continuam presentes no cotidiano das comunidades.
"Os povos da Amazônia têm uma relação muito forte com a sua ancestralidade. As narrativas, sejam lendárias ou mitológicas, fazem parte do imaginário coletivo e se mantêm vivas até hoje. Para quem é de fora, podem até não fazer sentido, mas para essas populações, a crença é real e profundamente respeitada", explicou.
Ela ressalta que essas histórias também orientam a forma como as pessoas se relacionam com a mata.
"Quando alguém entra em uma determinada localidade para caçar ou cortar lenha, é preciso seguir rituais. Se não houver esse cuidado, a pessoa corre o risco de se perder ou até de ser encantada por um desses seres lendários", acrescentou.
De acordo com a antropóloga, a floresta é percebida como um espaço vivo, habitado por presenças que exigem respeito.
"A mata possui vozes, possui sons. Há relatos de que, se alguém revidar a um barulho ou assobio, esse ser lendário pode se manifestar, enfeitiçar a pessoa e levá-la para o fundo da floresta. Por isso, nunca se deve confrontar. Para os povos amazônicos, esses seres existem e não se duvida disso em momento algum", afirmou.
Entre esses personagens, Fonseca cita o Curupira, conhecido como guardião das matas.
“Segundo os relatos, se houver algum tipo de confronto com esse ser, ele pode desorientar a pessoa, fazê-la se perder e nunca mais retornar. Já a Matinta, quando um morador ou caçador entra nos confins da mata de forma irresponsável, pode aparecer como uma maneira de defender o território".
Thaila conclui que essa relação de cuidado e reverência é essencial para entender o vínculo profundo entre comunidades tradicionais e a natureza.
"O respeito aos seres da floresta garante a sobrevivência e a harmonia com o ambiente. São ensinamentos transmitidos de geração em geração e que continuam moldando a vida nas comunidades amazônicas".
Dia do Folclore: moradores de comunidade do AM convivem com guardiões invisíveis da floresta e contam relatos dos 'encantados'
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